15.3.06

Tem Tio Sukita no Samba

por Fernanda Canavêz e Paloma Moura

”Foram me chamar, eu estou aqui, o quê que há? Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho...". O convite foi feito: domingo vai rolar a nossa roda no Posto 9 - diz nosso famoso Tio Sukita, da Escravos da Mauá. Fala como que ao pé do ouvido, para que ninguém descubra tal pérola: a mais disputada roda de samba carioca nos últimos anos clama por discrição. O Largo da Prainha ficou pequeno para a mocidade que aprende a admirar os grandes bambas do samba. Entretanto, como "o samba agoniza, mas não morre", a concorridíssima velha guarda aposta no reduto jovem, o Posto 9, para perpetuar a roda da escravidão.
Saímos de lá pequenininhas, "o que é que há", para ouvir famosos hinos fundamentais em uma roda de muito estilo. Samba de qualidade, fim-de-tarde em Ipanema, encontro com as amigas... O que mais poderíamos querer? Momentos tão simples e agradáveis já começam a deixar saudade. Será que vai ser para sempre? Será que nossa amizade vai acabar? - já questionava uma de nós outro dia. Talvez não, nem tudo "caminha no mesmo lugar, sem pressa, sem medo de errar". O encontro de gerações já nos leva a pensar no futuro. Como seremos?
Uma senhorinha serelepe começa a dar o ar de sua graça entre seus companheiros de meia idade. Um vestidinho divertido, corpinho de Barbie e suquinho Gummie na carcaça!!! Afinal de contas, ninguém consegue dar pulinhos de alegria na areia por tanto tempo. De repente, vê nosso Tio Sukita e dispara em sua direção para uma saudação calorosa. Nem reparou que, em sua jornada, foi jogando areia em quem escutava calmamente a cantoria. Volta ao seu palco particular e continua sambando: alegre e sozinha, como se nada mais fosse necessário para deixá-la satisfeita.
Nossa "menininha" era observada atentamente por uma coroa alta (é, comprida mesmo), que carregava uma garrafa de água. É, água mesmo, daquelas que os passarinhos bebem. Seus cabelos lembravam Maria Bethânia, claro que não eram só os cabelos, afinal sua postura e olhar melancólicos se destacavam no meio das alegres senhoras que cantavam os sambas e se emocionavam, como que seduzidas pelos seus próprios retratos.
Estavam ali, na areia fria, identificadas com os causos mais inusitados, relatados pelos sambas mais, talvez, ginasianos, sugerindo a todos uma eterna pergunta: o que resta de nós senão estes versos? Poderia eu, ter escrito isto? Fala de mim ou fala de todos?
A pergunta adormece por alguns instantes, quando mais um copo de cerveja é entornado. De repente, um grito emocionado anuncia: "Acreditar, eu não. Recomeçar, jamais!". Nele, se misturam todos, no intenso canto de identificação do amor acabado. Os serenos ouvintes se levantam e se juntam aos mais empolgados para cantar, todos, o seu hino. Olha-se para um lado e lá está ela, enrolada numa canga preta, sorridente, cumprimentando um bebê de colo. Era ela, o retrato do nosso futuro, com um olhar tranqüilo, meio despretencioso da vida.
Veja bem, não era triste e sim descompromissado. Seu dançar e seu caminhar eram leves e sua simpatia, há que ser confessado, muito nos invejou. Ainda admiradas pela dama de negro, fomos surpreendidas por uma cena no mínimo dantesca: uma senhora um tanto quanto curiosa brinca alegremente com sua dentadura. Travando uma luta na qual a única perdedora poderia ser sua imagem perante os colegas de roda, a moça futuca para lá e para cá, na tentativa de minimizar sua ansiedade. Ansiosa por quê? Talvez por ter perdido o brilho de sua juventude, por não saber entoar os cânticos universais que eram tocados?
Certamente, a criatura "resolveu ficar, é que os momentos felizes tinham deixado raízes em seu penar". Não entendeu direito o "enredo desse samba amor", quando negligenciou a advertência de Dona Ivone Lara. É isso aí, amigas, "a vida foi em frente e você simplesmente não viu o que ficou pra trás!" Como seremos? Não sei, há que se atentar para a simpatia que, diga-se de passagem, é quase amor.
Envoltas numa canga preta, ouçamos mais Dona Ivone. A princípio nos restam muitos carnavais e tomara que, dentro de alguns anos, não nos reste como única diversão o embate com nossas dentaduras!!!!
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O texto supra-citado é criação de duas amissíssimas minhas, Capivara e Palerma. Está publicado em livro, mas infelizmente não sei informar por enquanto onde. Quem gostou ou não, ou quer deixar recado para as autoras, faça via comment, ok? Boa leitura!

2 comentários:

Anônimo disse...

O texto é perfeito,a leitura prende,encanta.Quando eu li,eu me senti lá, observando a roda de samba e tudo que estava acontecendo.Parabéns Fernanda e Paloma.Acho que esse curso de psicologia está formando mais escritores do que psicólogos,(eu não reclamo).O recorte:"nem tudo caminha no mesmo lugar,sem pressa ,sem medo de errar",dá um toque de sonho que só os poetas tem.Sem dúvidas foi o melhor texto que eu li este ano.Quero saber onde está publicado. (Só um toque, a fonte tá muito pequena e dificulta a leitura,se der para melhorar..)

Anônimo disse...

Valeu Mara!
Querido Marcelo, o texto não foi publicado em livro, mas divulgado por uma estudiosa de samba no blog dela. Espero que todos gostem, traduz muito de nossos momentos de descontração e "filosofia de botequim".
Abçs,
Fernanda - a referida capivara