13.10.05

Um sopro de vida e o poço

Foto: Céu e mar se encontram (minha produção)


Um sopro de vida e o poço
Marcelo Magnelli


Era uma manhã comum quando ela acordou e sentiu uma estranha sensação. Não, não é um compromisso, afinal, é domingo. Está faltando o quê? Compras? Tinha que visitar a mamãe? Era dia do jardineiro? Não...
Ela se levantou, foi ao banheiro, olhou para o espelho e se estranhou. Não era mais jovem? Ontem mesmo essas rugas não estavam aí... a decoração era tão brilhante, os adornos da torneira estavam foscos, não tinham aquela impressão de novos. Mas já havia 10 anos da reforma...
Tem alguma coisa estranha comigo, pensa. Talvez, talvez... o estranhamento era com ela. Sempre com as mesmas rotinas, acorda, dá uma guaribada na casa, uma corridinha no calçadão, toma uma ducha e vai pro trabalho. No trabalho, sabe como é, projeto, visita cliente, conversa com o mestre-de-obras... volta prá casa.
Em casa, aquela solidão de sempre, liga prá Leila, promete que vai sair com aquele pessoal antiiiigo da faculdade (e nunca vai) e termina o dia com uma taça de vinho, ouvindo Ella Fitzgerald e vendo da sacada o movimento da Atlântica. Parece legal, né? Experimenta fazer isso todo dia.
Nesse dia, não conseguiu fazer nada disso. Passou o dia todo entre esse descompasso da vidinha dela e essa sensação de que algo estava diferente. Ela não cabia dentro da roupa. Os sapatos estavam pequenos, o salto alto incomodava. E aí? Como fazer prá viver uma vida que não me pertence? Era eu quem estava a todo momento nos últimos 35 anos (ela sempre mente a idade) nesse corpo. Mas ele não é meu. Não foi para o escritório, não compareceu àquela reunião para definir o projeto do shopping e não abriu o vinho.
Abriu um álbum de fotos e começou a folhear. Olhou cada detalhe: álbum dos antigos, com aquelas folhas de papelão grossas, entremeadas com folhas de seda, máquina 6X6 Twin Lens e aquelas bordinhas enfeitadas... ih, há quanto tempo não vejo essa... a mamãe, papai, eu e aquela fazenda em Itatiaia. Dá prá ver no canto direito a escultura que o caseiro fez com a ex-árvore: uma mulinha com um menino montado nela, olhando para baixo. O trabalho era rústico, mas desde aquela época ela pensava que ele representava o seu par ideal. Par ideal... o último par ideal já tinha partido há anos... assim como a escultura, partiu num raio nesses dias chuvosos. De lá para cá, sobrou o quê? Antes ela diria que nada. Naquele dia, sem dúvida faltava algo. Seria uma companhia? Sei lá, antes só do que mal acompanhada.
Deitou na cama mas não dormiu. Não sabia como dormir. Estranho, pareço personagem do Oto Lara... virou prum lado, pro outro, de barriga prá baixo (balançou as perninhas no ar), sentou, fumou, e a sensação estranha ganhou um nome: estou numa angústia só! Angústia... lembrou da época da sua análise; saiu porque quis. Sempre assim. Chegou num momento em que ela não conseguiu tempo, o carro estava quebrado, a grana curta, e além disso, mas sem muita importância, não estava gostando de sair tão mal das sessões. No fundo, no fundo, era incompetência dele. Não deu jeito, por outras vias saí.
E por outras vias se via mergulhada de cabeça numa angústia danada! Fazer o que? Talvez retornar para a análise... mas e exatamente agora? fazer o quê?? Pegou um livro. Abriu em uma página qualquer e leu: “e, de repente, sua tez empalideceu-se diante de tão fantasmagórica visão”. Se lembrou da vez em que foi acampar com aqueles mesmos amigos da faculdade e passou por uma situação parecida. O rio aumentou, lambendo tudo de suas margens, inclusive ela.
Era assim que ela estava na vida: levada pela correnteza. Pela necessidade de sobrevivência no mundo dos negócios, abriu mão dos seus amigos, exceto alguns – a Leila, a Fernanda, o Cláudio... a Beatriz... não, ela não conta – e entrou num pique de trabalho de deixar qualquer workaholic morrendo de inveja. Tinha tanta coisa prá fazer que não percebia o tempo passar. É, o tempo passou, as rugas estão ali ainda para comprovar, os amigos não mais, por opção dela; e a família... a família mora ali do lado, dá prá ir a pé, mas tem... dois, não, quatro meses que não vejo o pessoal!!
Caiu num choro compulsivo que não sabia explicar; os soluços não vinham do peito, mas da alma. Como pode faltar algo prá mim, agora que trabalhei tanto, tenho uma boa conta bancária e um celular pequenininho?
Deitada, em posição fetal, fazia um carinho com a mão esquerda na perna enquanto sentia que no entre-soluço um silêncio narcotizante chamava todas essas preocupações para um poço escuro. O seu poço do esquecimento no silêncio da catarse. Um último soluço. Dormiu. E nunca mais acordou.

9 comentários:

Anônimo disse...

Putz... fabuloso!! Parabéns, Marcelo... vou querer ler mais coisas tuas (agora, não desgrudo mais de ti!! heheheheh). Complemento esse final com uma frase fantástica do Lourenço Beata: "Então senti que o resumo é de cada um e todo rumo deságua em lugar comum. Quando desespero, vejo muito mais. Essa tristeza dói, meu fingimento é sério... como aéreo é sempre todo amor". Um grande abraço do teu amigo... e fã. Quero teu msn.

Anônimo disse...

Olá Marcelo!
Como sempre o Blog tá show! Queria suegerir um CD: "Home" do Simply Red. É possível?
Forte abraço amigo.
Rebelatto

Anônimo disse...

Densidade... no escrito e na foto!
Gosto de ler você!

Anônimo disse...

MARAVILHOSO... AINDA NÃO LÍ SEU BLOG TODO, PORTANTO NÃO SEI SE VC É ESCRITOR PROFICIONAL. SE NÃO FOR, VC ESTÁ PERDENDO TEMPO. SUA ESCRITA NOS PRENDE A ATENÇÃO E NOS TRANSPORTA FAZENDO COM QUE POSSAMOS IDEALIZAR OS PERSONAGENS E O SEU TIPO DE VIDA. DOM É DOM, NEM TODOS TEM O DOM Q VC TEM. PARABÉNS. VOLTO PRA LER SEU BLOG TODO.

MARCELO COMPLEXO.

Anônimo disse...

LINDO! Demais... Sem palavras...

Anônimo disse...

Querido! Amei! Lindo! Curtinho mas intenso... e com aquele toque sutil mas notadamente presente da nossa tão amada psicanálise! Repito o que eu já havia lhe escrito em outro lugar: não esconda esse talento! Quero ler mais coisas suas! Deixa?! Deixa?! Deixa?! Beijo enorme pra vc!

Mr. Frugal disse...

Caio, obrigado, amigão! Mande um novo post com seu blog para divulgarmos aqui! Os papos acabaram? :) (Ah, excelente! Adorei a passagem que citou no seu comment!!)
Marcelo, sumido! Como estão as coisas? Abraço!
Humberto, obrigado! Volte sempre e contribua da forma que puder, com textos, poemas, livros, Álbuns. Abração!

Anônimo disse...

Vc sabe q este é o meu preferido.Não tenho palavras para dizer o que ele me faz sentir.Vc sempre teve muitos talentos

Anônimo disse...

ímpar...